Lênin: Engels e a importância da luta teórica (*)
Entre finais de 1901 e princípios de 1902, Lênin escreveu sua célebre
obra “Que Fazer?”. A primeira edição foi publicada há exatos 110 anos,
em 1902. Nesta obra, o dirigente da Revolução Socialista Soviética lança
as bases teóricas da construção do partido comunista, combatendo o
espontaneísmo e defendendo os princípios do Marxismo. “Sem teoria
revolucionária não há movimento revolucionário”, dizia.
"O dogmatismo, o doutrinarismo", a fossilização do Partido, castigo inevitável do estrangulamento forçado do pensamento", tais são os inimigos contra os quais entram na arena os campeões da "liberdade de crítica" do Rabótcheie Dielo. Apreciamos que esta questão tenha sido colocada na ordem do dia; apenas proporíamos completá-la com esta outra questão: Mas, quem são os juizes? Temos diante de nós dois prospectos de edições literárias. O primeiro é o "programa do Rabótcheie Dielo, órgão periódico da 'União dos Sociais-Democratas(**) Russos'" (separata do número 1 do Rab. Dielo). O segundo é o "anúncio da retomada das edições do grupo 'Liberação do Trabalho'".
Todos os dois são datados de 1899, época em que a "crise do marxismo" estava, há muito, na ordem do dia. Portanto, em vão procuraríamos na primeira obra as indicações sobre esta questão e uma exposição precisa da posição que pensa tomar, a esse respeito, perante o novo órgão. Quanto ao trabalho teórico e suas tarefas essenciais à hora presente, esse programa e seus complementos adoptados; pelo Terceiro Congresso da "União"(em 1901) nada mencionam (Dois Congressos, p. 15-18). Durante todo esse tempo, a redaçcão do Rabótcheie Dielo deixou de lado as questões de teoria, apesar de essas preocuparem os sociais-democratas do mundo inteiro. O outro prospecto, ao contrário, assinala logo de início o descuro do interesse pela teoria, no decurso desses últimos anos; reclama, insistentemente, "uma atenção vigilante para o aspecto teórico do movimento revolucionário do proletariado", e exorta a uma "crítica implacável das tendências anti-revolucionárias, bernsteinianas, e outras", em nosso movimento.
Os números publicados da Zaria mostram como este programa foi aplicado. Vê-se assim, portanto, que as grandes frases contra a fossilização do pensamento etc. dissimulam o desinteresse e a impotência para fazer progredir o pensamento teórico. O exemplo dos sociais-democratas russos ilustra, de uma forma particularmente notável, esse fenômeno comum à Europa (e de há muito assinalado pelos marxistas alemães), de que a famosa liberdade de crítica não significa a substituição de uma teoria por outra, mas a liberdade com respeito a todo sistema coerente e reflectido; significa o eclectismo e a ausência de princípios.
Quem conhece, por pouco que seja, a situação de fato de nosso movimento não pode deixar de ver que a grande difusão do marxismo foi acompanhada de certo abaixamento do nível teórico. Muitas pessoas, cujo preparo era ínfimo ou nulo, aderiram ao movimento pelos seus sucessos práticos e importância efectiva. Pode-se julgar a falta de tacto demostrada pelo Rabótcheie Dielo, pela definição de Marx, que lançou de forma triunfante: "Cada passo avante, cada progresso real valem mais que uma dúzia de programas".
Repetir tais palavras nessa época de dissensão teórica equivale a dizer à vista de um cortejo fúnebre: "Tomara que sempre tenham algo para levar!" Além disso, essas palavras são extraídas da carta sobre o programa de Gotha, na qual Marx condena categoricamente o eclectismo no enunciado dos princípios. Se a união é verdadeiramente necessária, escrevia Marx aos dirigentes do partido, façam acordos para realizar os objectivos práticos do movimento, mas não cheguem, ao ponto de fazer comércio dos princípios, nem façam "concessões" teóricas.
Tal era o pensamento de Marx, e eis que há entre nós pessoas que, em seu nome, procuram diminuir a importância da teoria! Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário. Não seria demasiado insistir sobre essa ideia em uma época, onde o entusiasmo pelas formas mais limitadas da acção prática aparece acompanhado pela propaganda em voga do oportunismo.
Para a social-democracia russa em particular, a teoria assume importância ainda maior por três razões esquecidas com muita frequência, a saber: primeiro, nosso partido apenas começou a se constituir. a elaborar sua fisionomia, e está longe de ter acabado com as outras tendências do pensamento revolucionário que ameaçam desviar o movimento do caminho certo. Ao contrário, assistimos justamente nesses últimos tempos (como Axelrod já há muito havia predito aos "economistas") ao recrudescimento das tendências revolucionárias não sociais-democratas. Nessas condições, um erro "sem importância" à primeira vista pode acarretar as mais deploráveis consequências, e é preciso ser míope para considerar inoportunas ou supérfluas as controvérsias de facção e a estrita delimitação dos matizes.
Da consolidação deste ou daquele matiz pode depender o futuro da social-democracia russa por muitos e longos anos. Segundo, o movimento social-democrata é, pela sua própria essência, internacional. Isso não significa somente que devemos combater o chauvinismo nacional. Significa, também que um movimento iniciado em um país jovem só pode ter êxito se assimilar a experiência dos outros países. Ora, para tanto não é suficiente apenas conhecer essa experiência, ou limitar-se a copiar as últimas resoluções. É preciso saber proceder à análise crítica dessa experiência e controlá-la por si próprio. Somente quando se constata o quanto se desenvolveu e se ramificou o movimento operário contemporâneo, pode-se compreender a reserva de forças teóricas e de experiência política (e revolucionária) necessárias para se realizar essa tarefa. Terceiro, a social-democracia russa tem tarefas nacionais como nenhum outro partido socialista do mundo jamais o teve.
Mais adiante, falaremos das obrigações políticas e da organização que nos impõe essa tarefa: liberar todo um povo do jugo da autocracia. No momento, apenas indicaremos que só um partido guiado por uma teoria de vanguarda é capaz de preencher o papel de combatente de vanguarda E para se fazer uma ideia mais concreta do que isso significa, lembre-se o leitor dos predecessores da social-democracia russa, tais como Herzen, Bielínski, Tchernichévski e a brilhante pleiade de revolucionários de 1870-1880; pense na importância mundial de que a literatura, russa atualmente se reveste; mas, basta! Citaremos as observações, feitas por Engels em 1874, sobre a importância da teoria no movimento social-democrata. Engels reconhecia na grande luta da social-democracia não apenas duas formas (política e econômica) - como se faz entre nós - mas três, colocando a luta teórica no mesmo plano. Suas recomendações ao movimento operário alemão, já vigorosa prática e politicamente, são tão instrutivas do ponto de vista dos problemas e discussões atuais, que o leitor, esperamo-lo, não se importará que transcrevamos o longo trecho do prefácio ao livro “Der deutsche Bauernkrieg”, que há muito já se tornou uma raridade bibliográfica: "Os operários alemães apresentam duas vantagens essenciais sobre os demais operários da Europa. Primeiramente, pertencem, ao povo mais teórico da Europa; além disso, conservaram o senso teórico já quase completamente desaparecido nas classes por assim dizer "cultivadas" da Alemanha.
Sem a filosofia alemã que o precedeu, notadamente a de Hegel, o socialismo alemão - o único socialismo científico que já existiu - não teria sido estabelecido. Sem o sentido teórico dos operários, estes não teriam jamais assimilado esse socialismo científico, como o fizeram. E o que prova esta imensa vantagem é, de um lado, a indiferença com respeito a toda teoria, uma das causas principais do pouco progresso do movimento operário inglês, apesar da excelente organização dos diferentes ofícios, e, de outro lado, a perturbação e a confusão provocadas pelo proudhonismo, em sua forma inicial, entre os franceses e os belgas, e, na sua forma caricaturada, que lhe deu Bakunin, entre os espanhóis e os italianos. A segunda vantagem é que os alemães integraram tardiamente o movimento operário, tendo sido quase os últimos. Do mesmo modo que o socialismo alemão jamais se esquecerá de que foi erigido sobre os ombros de Saint-Simon, de Fourier de Owen, três homens que, apesar de toda a fantasia e a utopia de suas doutrinas, encontram-se entre os maiores cérebros de todos os tempos e se anteciparam genialmente a inumeráveis idéias, cuja exatidão presentemente demonstramos de maneira científica, também o movimento operário prático alemão jamais deve esquecer-se que desenvolveu sobre os ombros dos movimentos inglês e francês, que pôde simplesmente beneficiar-se de suas experiências adquiridas penosamente e evitar, no presente, seus erros, então na maioria inevitáveis.
Sem o passado dos sindicatos ingleses e das lutas políticas dos franceses, sem o impulso gigantesco dado especialmente pela Comuna de Paris, onde estaríamos nós, hoje? É preciso reconhecer que os operários alemães souberam aproveitar as vantagens de sua situação, com rara inteligência. Pela primeira vez, desde que existe um movimento operário, a luta é conduzida em suas três direções - teórica, política e econômico-prática (resistência contra os capitalistas) - com tanto método e coesão. É neste ataque concêntrico, por assim dizer, que reside a força invencível do movimento alemão. De um lado, em ramo de sua posição vantajosa; de outro, em decorrência das particularidades insulares do movimento inglês e da violenta repressão do movimento francês, os operários alemães, no momento, colocam-se na vanguarda da luta proletária.
Não é possível prever durante quanto tempo os acontecimentos, lhes permitirão ocupar esse posto de honra. Mas, enquanto o ocuparem, é de se esperar que cumprirão seu dever, como convém. Para tanto, deverão redobrar os esforços, em todos os domínios da luta e da agitação. Os dirigentes, em particular, deverão instruir-se cada vez mais sobre todas as questões teóricas, libertar-se cada vez mais da influência das frases tradicionais, pertencentes às concepções obsoletas do mundo, e jamais se esquecer que o socialismo, desde que se tornou uma ciência, exige ser tratado, isto é, estudado, como uma ciência. A tarefa consistirá, a seguir, em difundir com zelo cada vez maior entre as classes operárias, as concepções sempre mais claras, assim adquiridas, e em consolidar de forma cada vez mais poderosa a organização do partido e dos sindicatos... ... Se os operários alemães continuarem a agir assim, não digo que marcharão à frente do movimento - não é de interesse do movimento que os operários de uma única nação, em particular, marchem à frente -, mas ocuparão um lugar de honra na linha de combate; e estarão armados e prontos se provas difíceis e inesperadas, ou ainda grandes acontecimentos exigirem deles maior coragem, decisão e ação".
As palavras de Engels revelaram-se proféticas. Alguns anos mais tarde, os operários alemães foram inesperadamente submetidos à dura provação da lei de exceção contra os socialistas. E os operários alemães encontram-se de fato suficientemente preparados para sair vitoriosos.
O proletariado russo terá de sofrer provas ainda infinitamente mais duras, terá de combater um monstro perto do qual o da lei de exceção, em um país constitucional, parece um pigmeu. A história nos atribui, agora, uma tarefa imediata, a mais revolucionária de todas as tarefas imediatas do proletariado de qualquer país. A realização dessa tarefa, a destruição do baluarte mais poderoso, não somente da reação européia, mas também (podemos agora dizê-lo) da reação asiática, fará do proletariado russo a vanguarda do proletariado revolucionário internacional. E temos o direito de esperar que obteremos este título honorário merecido já pelos nossos predecessores, os revolucionários de 1870-1880, se soubermos animar com o mesmo espírito de decisão e a mesma energia irredutível o nosso movimento, mil vezes mais amplo e mais profundo.
(*) Extrato do livro “Que Fazer?”
(**) Na Rússia como na Europa da época, o movimento comunista designava-se como “social-democracia”.
Fonte: www.vermelho.org.br
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